segunda-feira, abril 26, 2010

Ford Modelo T



Forte como uma mula e útil como um par de sapatos, o Ford Modelo T deu início ao movimento rodder e é considerado o carro mais importante do século XX. O carro que colocou a América sobre rodas. É assim que muitos historiadores se referem ao Ford Modelo T, cujo lançamento completou 100 anos em 2008. Para entender a história do “tin lizzie” (“lata barata”, como foi apelidado na época) é necessário voltar no tempo, mais precisamente para 16 de janeiro de 1903, quando foi fundada a Ford Motor Company, empresa criada por Henry Ford.

A Ford já nasceu inovando. Prova disso é que, no inicio do século XX, as fábricas só lançavam novos carros tendo antes um certo número de encomendas previamente confirmadas. Contrariando essa prática, Ford lançou seu primeiro veículo, o Modelo A, sem qualquer tipo de reserva antecipada. A estratégia colocou em risco a saúde financeira da fábrica recém-criada, pois, um mês após sua fundação, a Ford teve seu capital drasticamente reduzido: diminuiu de US$ 28 mil para US$ 233.
Entretanto, o Modelo A obteve êxito e capitalizou o empreendimento. Com os lucros, foi possível lançar novos veículos, como os Ck, B8, F, K, N, R e S, mas nenhum deles causou o mesmo impacto do Modelo T.
Quando o protótipo desse carro foi finalizado, Ford ficou tão entusiasmado que não se sentiu seguro para dirigir o modelo. Assim, o sócio George Holley foi escolhido para levar o empresário, ao volante do “tin lizzie”, até o centro de Detroit, nos Estados Unidos. Ambos surpreenderam a população com as soluções empregadas no novo veículo, antecipando assim o sucesso que estava por vir.
Assim que voltaram para a fábrica, Ford, satisfeito com a reação das pessoas, distribuiu pontapés nos fundilhos e fortíssimos tapas nas costas de qualquer funcionário que lhe cruzasse o caminho. Era o começo de um império que perdura até os dias de hoje.

PAU PRA TODA OBRA

Simples e robusto, o Modelo T foi projetado por J. Galamb e G. H. Wills sob supervisão técnica de Henry Ford. Seu motor tinha quatro cilindros em linha, com diâmetro e curso de 95,25 mm x 101,6 mm, cilindrada de 2.896 cm³ e taxa de compressão de 3,5:1. Ao contrário da técnica utilizada pela concorrência, os cilindros eram fundidos num só bloco, algo incomum na ocasião. As velas apresentavam roscas cônicas e os tuchos não tinham regulagem, ao contrário do carburador, ajustado por um comando existente no interior do veículo.
Fundido separadamente, o cabeçote podia ser removido, facilitando a manutenção de válvulas e pistões. As outras fábricas espalharam que essa característica fazia do Modelo T um carro frágil, pois daria margem a todo tipo de vazamento. Porém, com o passar do tempo, os concorrentes adotaram o mesmo esquema construtivo, provando o acerto de Galamb e Wills.
O sistema de lubrificação era elementar, pois funcionava por gravidade e pescador, mas dificilmente dava problemas. As primeiras unidades eram equipadas com bomba d’água centrífuga, substituída pelo sistema de termo sifão algum tempo depois.
O veículo tinha quatro bobinas e, no volante de direção, era instalado um magneto de baixa tensão. As suspensões apresentavam feixes de molas transversais (um dianteiro e outro traseiro) sem amortecedores. O câmbio era epicicloidal, sem engrenagens deslocáveis para engate. Obtinha-se a inserção de uma ou outra velocidade apertando um pedal que, por meio de um freio de cinta, bloqueava a coroa do planetário correspondente à marcha desejada. Não era necessário, portanto, o uso da embreagem.
O chassi tinha entreeixos de 2,54 m, as bitolas mediam 1,42 m e seu comprimento total era de 3,25 m. A carroceria, feita de aço vanádio, tinha carroceria touring de quatro lugares, aberta. Desenvolvendo 20 cv a 1.600 rpm, o Modelo T tinha torque máximo de 9 kgm a 800 rpm, possibilitando ao carro, de 545 kg, atingir 60 km/h de velocidade máxima. A Ford começou a fabricar o Modelo T de série em 24 de setembro, sendo que a primeira unidade ficou para Henry Ford, que a utilizou em suas férias.
No mês de outubro, a empresa enviou oito carros para a Europa, os quais foram expostos nos salões de Paris e Londres, rendendo 253 encomendas. Nesse mesmo mês, nos EUA, a Ford anunciou o novo veículo no jornal The Saturday Evening Post. No dia seguinte, 4 de outubro, a montadora recebeu cerca de 1.000 cartas de pessoas interessadas no carro e, em 6 de outubro, as correspondências enviadas, já não cabiam mais no escritório da empresa.
Apesar disso, o Modelo T foi oficialmente lançado, em Nova York, no dia 31 de dezembro. O carro custava US$ 850 e, além do preto, podia ser comprado nas cores vermelho, verde, cinza e branco. O sucesso foi tamanho que, em meados de 1909, a Ford teve de pedir que seus concessionários não aceitassem mais encomendas. A empresa simplesmente não conseguiu fazer mais do que 18.257 unidades naquele ano, mas tinha o triplo de pedidos em carteira, todos com depósitos pagos.
“Se você usar um cavalo por 16 mil quilômetros, dia e noite, vai precisar de um cavalo novo, mas se você dirigir um Modelo T, só vai ter de trocar os pneus”. Esta frase, creditada a Henry Ford, faz parte do mito que cerca o famoso veículo, assim como uma história que teria ocorrido no interior dos EUA. Segundo consta, um Modelo T quebrou na frente de uma loja de ferragens.
O motorista desceu do veículo, entrou no estabelecimento e comprou uma série de pequenas bugigangas. Depois, voltou ao Modelo T, mexeu no motor, girou a manivela, ligou o carro e foi embora. Não acreditando no que viu, o dono da loja jogou fora a placa de seu estabelecimento e encomendou uma nova com os dizeres “Peças e Acessórios Ford”.
Exageros à parte, além de ser resistente e de fácil manutenção, o Modelo T foi o primeiro veículo a usar a linha de montagem em massa. No início, como nas outras fábricas, os operários se deslocavam constantemente para unir as partes do carro. Porém, dado o aumento das encomendas, Ford decidiu empregar um método de trabalho sugerido dez anos antes pelo engenheiro Frederick Winslow Taylor: fazer cada indivíduo montar um único item, enquanto o carro se movimentava lentamente diante do operário. Primeiro se fez isso com as peças, começando pelo magneto. Depois, com conjuntos mais complexos como os motores, transmissões e, por fim, todo o resto do veículo. No dia 7 de outubro de 1913 um chassi, que antes gastava doze homens/hora para ser completado, passou a precisar de apenas três. Em janeiro do ano seguinte, com a afinação da linha, o tempo diminuiu para uma hora e trinta e cinco minutos. Essa aceleração forçou a empresa a eliminar todas as cores vivas de seu catálogo, restando apenas o preto, que era feito com um tipo de laca que secava rapidamente. Daí surgiu a famosa frase: “Você pode ter seu Ford na cor que quiser, desde que seja preto”.
Mas a cor não era a única mudança sofrida pelo Modelo T até aquele momento: em 1911 o chassi passou a ser de madeira coberto por chapas de aço e, no ano seguinte, o latão, que envolvia a moldura do pára-brisas, os faróis, a buzina e os raios do volante, foram substituídos por ferro pintado de preto. Em 1913, ano do início do aumento da produção, o modelo com duas fileiras de bancos recebeu portas dianteiras (antes a área era aberta), mas só a da esquerda abria, pois a porta do motorista era apenas delineada e o freio de mão impediria sua abertura.
Apesar do vigor no mercado, lentamente o Modelo T ia envelhecendo. Preocupados com o futuro da empresa, alguns funcionários se uniram e, em 1914, enquanto Henry Ford estava viajando, projetaram e construíram aquele que seria uma evolução do “tin lizzie”. Quando o industrial retornou e lhe foi mostrado o veículo, ficou tão furioso que destruiu o protótipo a machadadas, deixando todos com a certeza de que jamais admitiria que fossem realizadas alterações radicais sem o seu consentimento.
A reação tinha lá sua lógica porque, mesmo sendo um produto elementar, a procura pelo Modelo T era maior do que a demanda. Assim, visando a aumentar o número de operários, Henry dobrou os salários de seus funcionários e instituiu o “dia de 5 dólares”, além de diminuir a jornada de trabalho de 10 horas para 8 horas por dia. Foi o inicio de uma grande confusão. Os presidentes e acionistas das demais fábricas entraram em pânico, e o jornal New York Times publicou uma matéria acusando Henry Ford de ser socialista, enquanto o Partido Socialista qualificou a decisão da Ford como “uma armadilha detestável”.
Henry, sereno, limitou-se a responder que: “quando você paga bem a um homem, você pode conversar com ele”, disse. “O dia de cinco dólares é um ato de justiça social e engenharia de eficiência”, completou.
Começaram então a ocorrer ameaças de morte e, por tal motivo, Henry passou a andar com uma escolta armada para protegê-lo. Enquanto isso, milhares de trabalhadores saiam das outras fábricas e tentavam entrar na Ford. Os que já trabalhavam na montadora, para conservar o emprego, passaram a reclamar da lentidão da linha de montagem.


SUPERANDO O CARTEL

O Modelo T, apesar de não mudar nunca, era aperfeiçoado sempre. Em 1915, o painel de instrumentos, em cerejeira, cedeu lugar a um novo, de ferro curvo. Os pára-lamas traseiros foram arredondados e os faróis elétricos substituíram os de acetileno. Capô do motor alisado e a buzina elétrica foram as alterações mais visíveis em 1917, mas a mecânica também foi aprimorada, passando a usar metais mais leves e resistentes no motor, com usinagem apurada e sistema de escape mais silencioso.
Independente disso, muito barulho estava por vir. Uma notícia pegou os EUA de surpresa em 11 de julho de 1919: o Wall Street Journal anunciou que Henry tinha comprado todas as ações da Ford Motor Company. Assim, o industrial viu-se obrigado a pagar a maior taxa de câmbio de todos os tempos, despendendo US$ 105.820.894 por ações que, anteriormente, custavam apenas US$ 21.675. Explica-se: graças ao êxito do Modelo T, o capital dos acionistas havia rendido, nos dezesseis anos anteriores, 500.000% de juros, algo jamais visto até então.
Certo de que havia cumprido sua missão, Henry entregou o comando de sua empresa ao filho Edsel, pois pretendia aposentar-se, tal como Rockfeller. Porém, as circunstancias forçariam sua volta. Ocorre que, com o fim da I Guerra Mundial, a Ford (e o resto da indústria norte-americana) pretendia vender boa parte de sua produção para as nações européias. Havia, entretanto, um sério problema, elas estava endividadas com os EUA. A Inglaterra propôs então o perdão da dívida, mas o congresso norte-americano recusou.
Os europeus foram obrigados a amortizar suas dividas em 62 anos, política que engessou a economia de muitos países e, por tabela, dificultou a vida do povo, servindo como pretexto para o surgimento de líderes como Hitler e Mussolini. Para fábricas como a Ford, a produção (sem as grandes encomendas do Exército, Marinha e Aeronáutica) também caiu. Como resultado, em poucos meses, três milhões de desempregados ganharam as ruas. Assim, a procura pelo Modelo T diminuiu e, para completar um quadro desesperador, a empresa ainda tinha uma dívida de US$ 33 milhões, que venceria em 18 de abril de 1921.
Dessa forma, Henry voltou à direção da empresa e, em 1920, diminuiu o preço do Modelo T até chegar abaixo do custo de produção. De US$ 575, o carro passou a ser vendido por US$ 355. Mas os aperfeiçoamentos continuaram, caso da adoção do motor de arranque elétrico, até então um recurso dos carros de luxo.
Naturalmente as demais empresas levaram um susto. Liderados pela General Motors, os executivos da concorrência se reuniram e decidiram não baixar os preços, mas apenas diminuir a produção, esperando assim que a Ford se arruinasse sozinha. Dias depois, entretanto, a Franklin diminuiu seus preços, sendo seguida da Studebaker e da Willys Overland. A General Motors, é claro, acabou fazendo o mesmo.
Enquanto isso, Henry perdia US$ 20 por unidade fabricada, prejuízo que era compensado pelo aumento no preço das peças de reposição, consumidas em grandes quantidades por todos os Modelo T construídos desde 1908. Assim, ao fechar as portas de sua fábrica na véspera do natal, Henry distribuiu US$ 7 milhões, como participação nos lucros, entre seus operários. Por outro lado, 152 mil ex-funcionários da concorrência entraram em 1921 desempregados.

REESTABILIZAÇÃO ECONÔMICA

Logo no início do novo ano, pequenas filiais da Ford, bem como oficinas autorizadas, começaram a receber grandes lotes de peças de reposição do Modelo T, com as quais deveriam montar carros completos, transformando o capital empatado em dinheiro. Em Detroit, para levantar o maior capital possível, Henry chegou ao ponto de abrir uma loja destinada a vender objetos supérfluos da empresa.
Entre outros itens, eram comercializados móveis, livros, máquinas de escrever e, curiosamente, todos os apontadores de lápis. Quando um funcionário perguntou como deveria apontar os lápis daí em diante, Henry disse que deveria fazê-lo com uma faca, “Mas que, por favor, a trouxesse de casa”. O industrial diminuiu a rede telefônica em 60%, despediu 446 dos 1.074 empregados de seu escritório e reduziu o salário-participação de US$ 146 para US$ 93. Assim, ao invés dos US$ 20 de prejuízo, casa unidade do Modelo T passou a dar US$ 33 de lucro.
Alheio a estratégia de Henry, Joseph Bower, presidente do Liberty Bank of New York, visitou o industrial para lhe oferecer dinheiro. Apresentou um plano de reestabilização, o qual continha, inclusive, o nome de um tesoureiro, espécie de interventor que, por contrato, deveria passar a dirigir a empresa. Henry devolveu os papéis a Joseph, lhe entregou seu chapéu, abriu a porta do escritório e o colocou pessoalmente na rua. Quando o prazo venceu, os depósitos bancários da montadora somavam US$ 27 milhões a mais que o valor da dívida a ser paga. Henry Ford havia vencido mais uma vez.
Em 15 de junho de 1924, saiu das linhas de montagem o Modelo T número 10 milhões. Seu preço (US$ 290) era o mais baixo de toda a história do carro. Dois anos depois, com o avanço da indústria química, novas lacas de secagem rápida surgiram, possibilitando à Ford voltar a vender o Modelo T em cores diversas. Nessa época, o “tin lizzie” podia ser adquirido com itens de luxo como pneus balão, rodas de arame, radiador niquelado e tanque de gasolina no curvão. Havia ainda a opção de comprar o Modelo T com carroceria rebaixada em relação ao chassi, dando-lhe uma aparência moderna e, com toda certeza, rendeu algumas idéias aos primeiros hot rodders.
Porém, a concorrência começou a colocar novos modelos no mercado que, em pouco tempo, minaram o sucesso do Modelo T, superando-o em todos os aspectos. Irascível, Henry não admitia, como em 1914, lançar um novo modelo. Porém, acabou sendo convencido a fazê-lo por seu filho Edsel. O resultado disso foi a apresentação, em 2 de dezembro de 1927, do novo Ford Modelo A, que repetiu o nome do primeiro carro feito pela empresa. Mas isso já é outra história.

MODELO T NAS CORRIDAS

Henry Ford sempre teve noção da importância de promover seus veículos, especialmente o Modelo T. Começou a fazê-lo em 1910, inscrevendo-o em uma unidade na prova Nova York-Seatlle, que percorreu os EUA de costa a costa. Foram 6.606 quilômetros de lama, neve, buracos e rios, devidamente “agraciados” por nevascas e tempestades de areia. O rústico Modelo T venceu a competição, completando o percurso em 22 dias e 55 minutos, superando carros esporte como o Shawnut de 45 cv, o Acme de 48 cv e o Ítala de 50 cv.
Apesar do passado glorioso, os Modelo T mais antigos, no começo da década de 1930, começaram a encher os pátios dos depósitos de sucata. Como eram muito baratos, passaram a ser empregados em filmes, especialmente comédias, nas quais sempre acabavam destruídos. Porém, pelo mesmo motivo (o preço baixo), também começaram a ser resgatados por jovens corredores e aprendizes de mecânicos. Muitas dessas pessoas alteravam o Modelo T, que passava a contar com carroceria modificada, motores originais envenenados e chassi do Modelo A, transformando-se em autênticos carros esporte.
Em 1932, com o lançamento do motor Ford V8, esses veículos ganharam vida nova, pois a adaptação do Flathead, que logo ganhou inúmeros venenos, otimizou ainda mais a já favorável relação peso/potência. Assim, os Modelo T tornaram-se grandes rivais, nas arrancadas, para os Packard, Peerless, Pierce-Arrow, Auburn e Duesenberg, muito embora não custassem muito mais que alguns poucos parafusos desses caríssimos veículos. Os híbridos da marca Ford, muito velozes, tornaram-se cada vez mais populares, servindo como referência para um fenômeno que, movido pelo rock da década de 50, assolaria os EUA e chegaria aos quatro cantos do planeta: o movimento hot rod.

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